Ana Cláudia Leocádio Gioia
Um dos momentos mais prazerosos da vida é quando comemos algo que nos faz lembrar de algum lugar, de pessoas ou de situações que nos marcaram profundamente ao longo da vida. Melhor ainda quando as receitas são compartilhadas conosco para tentarmos repetir aquele sabor inesquecível. Em tempos de valorização do chamado “raio gourmetizador”, resgatar a essência dos pratos de família traz um pouco de paz à mesa.
Às vezes nem precisa ser algo bem elaborado, mas algo simples como um chibé de farinha amarela com pirarucu, que era uma das coisas mais gostosas que costumávamos comer no almoço, nas idas para a roça com meus avós agricultores. Servido na cuia com água do igarapé mesmo, era uma iguaria e tanto.
Na minha última viagem a Manaus, em maio passado, qual foi minha alegria em aprender uma receita com a amiga Margareth Queiroz, de um “vatapá de batata” (por favor, não chamem de creme), que me remete aos tempos em que trabalhava em jornal impresso e íamos jantar o delicioso prato na casa dela e do amigo Sérgio Bártholo. Já havia tentado diversas vezes reproduzi-lo em casa, mas ficava um horror. Agora, volto para a Jamaica mais segura de preparar essa receita deliciosa.
Cada família tem um prato do coração, que somente determinada pessoa consegue fazer. É um pudim, um bacalhau, um peixe especial e até um tipo de arroz. Há sempre alguém que é o “mestre do sabor” ao preparar a refeição. Na nossa família, temos muita sorte de termos a melhor cozinheira do mundo, pelo menos para nós, que é a minha mãe Nazira. Tanto que, quando vou para o interior, esqueço-me de todas as receitas sofisticadas que aprendi na escola de Gastronomia para degustar somente seus preparos.
Dois pratos em particular se destacam: o pirarucu de casaca e o tracajá. O pirarucu, porque minha mãe não se permite incorporar nenhuma inovação, como passas, ameixas ou batata palha. Talvez por isso seja tão gostoso. O tracajá, quando é permitido pela legislação, tem todo seu conteúdo aproveitado, com destaque para o sarapatel das vísceras, servido no casco, além do picadinho no peito, com farinha ovinha hidratada e vinagrete, o guisado e cozido das demais partes do quelônio. Para os tempos atuais, com maior consciência ambiental, tal iguaria possa parecer bizarra, até selvagem, mas são pratos que fazem parte da culinária amazônica.
Isso não quer dizer que os pratos “gourmet”, que trazem uma elaboração e apresentação mais refinadas, não tenham valor. Pelo contrário, são muito relevantes para a evolução gastronômica e giram de maneira eficiente o mercado da restauração no mundo. As experiências que já tivemos nesses espaços foram extraordinárias, por serem ocasiões que nos surpreenderam pela inovação de algo que você acha não ter mais para onde evoluir.
O que gostaria de destacar nessa abordagem é a importância do que se convencionou chamar “comfort food” (comida confortável, em tradução livre) para a nossa interação com nossos semelhantes. De termos a capacidade, através de uma ou várias receitas, de reunir ao redor da mesa pessoas que nos fazem bem, lembrar do melhor prato feito por alguém que já partiu e tentar reproduzi-lo. Há famílias onde irmãos e irmãs promovem verdadeiras gincanas culinárias tentando repetir os preparos que suas mães ou pais costumavam fazer aos domingos. Manter o “raio gourmetizador” longe de determinadas refeições, como as afetivas familiares, faz-nos lembrar que estamos consumindo mais do que um alimento em si, mas um sentimento reconfortante de bem-estar entre os seus.
Fotos: Ana Cláudia Leocádio Gioia