Uma festa doce no Dia de Reis

As galettes já trazem a coroa para o sortudo. Foto: Reprodução/Internet

Por Ana Cláudia Leocádio Gioia

Confesso que sempre me ative ao Dia de Reis por causa da Igreja Católica. Todos os anos somos lembrados pelo Evangelho de Mateus sobre a peregrinação dos três reis magos, que seguiram a estrela guia e chegaram até Jesus, dias depois de seu nascimento, com ouro, incenso e mirra. Mas foi na França que conheci uma tradição gastronômica, comemorada em 6 de janeiro, muito divertida para o dia da Epifania do Senhor: a “galette des rois” ou bolo de reis.

Dá gosto de ver as Boulangeries e Pâtisseries (padarias e confeitarias), em Paris, abarrotadas dos mais variados tipos de “galettes”, espécie de bolo redondo e achatado. As tradicionais iguarias do Dia de Reis podem ser com massa folheada e creme frangipane (à base de amêndoas) ou de massa de brioche com frutas cristalizadas. Na cidade das Luzes, reina a primeira, também chamada “galette parisienne”.

Depois de ver nas vitrines, em 2019, tantas “galettes”, fui pesquisar no nosso amigo Google um pouco sobre a origem da tradição, que remontaria aos solstícios de inverno e sem conexão alguma com a religião cristã que, aliás, refuta tal costume pagão.

Segundo os historiadores, a tradição lembra as festas de Saturno, na Roma Antiga (entre o final de dezembro e o início de janeiro), quando os romanos indicavam um escravo como o ‘rei do dia’. O escolhido era quem encontrasse uma fava seca no bolo, dividido entre todos, sem distinção. Este tinha um dia de reinado antes de voltar à sua vida de servidão ou mesmo de condenado. Para garantir a distribuição justa, o mais jovem teria de ficar debaixo da mesa dizendo para quem iria cada pedaço.

Na Idade Média, a brincadeira afetava o bolso do sortudo que encontrasse o ‘corpo estranho’ no bolo, pois teria de pagar a conta das bebidas dos amigos. Não se sabe ao certo como se chegou ao bolo especificamente, que foi sobrevivendo ao tempo e ganhando espaço em cada país, que costuma ter sua receita favorita. Os portugueses, por exemplo, são igualmente famosos por seus bolos do Dia de Reis.

Desde o século 20 trocou-se o feijão pelos símbolos de plástico. Foto: Ana Cláudia Leocádio Gioia

Na França, primeiro foi colocada a fava (“fève” em francês) no meio do creme antes de assar. A seguir, foram confeccionados, em porcelana, pequenos adereços para lembrar o grão inicial, mas em tamanho ideal para não se engolir, que iam de anjinhos a formato de meia-lua. Somente no século 20 foi que chegaram as ‘fèves’ de plástico, atualmente utilizadas pelos confeiteiros e padeiros. Na “galette” que compramos, veio uma em forma de instrumento musical.

A receita da “galette des rois” francesa não chega a ser complicada, mas exige massa folheada de alta qualidade para garantir a beleza do bolo. Cada chef desenvolve, porém, sua própria receita, por vezes com custo bem superior aos bolos comuns. Nunca me esqueço de uma que comemos no restaurante “Arpège”, em Paris, do triplamente estrelado chef Alain Passard, que era envolta em massa folheada de chocolate e creme muito gostoso no recheio.

Receita exclusiva do restaurante Arpège, em Paris. Foto: Ana Cláudia Leocádio Gioia
Chef três estrelas Michelin, Alain Passard. Foto: Ana Cláudia Leocádio Gioia

Mas para quem deseja preparar a “galette” tradicional, precisa-se, primeiramente, fazer dois discos da massa folheada (um menor e outro um pouco maior). O menor receberá, ao centro, o creme frangipane, feito de farinha de amêndoas, açúcar, ovos e manteiga. Coloca-se o feijão ou uma amêndoa sobre o creme e cobre-se com o disco maior, colando-se bem as bordas. Por fim, com uma faca afiada, faz-se o desenho desejado sobre a massa, pincela-se com gema de ovo e leva-se ao forno a 200 graus Celcius, de 20 a 30 minutos.

Uma curiosidade interessante que envolve essa tradição na França remonta a Revolução Francesa, no século XVIII, que pôs abaixo a monarquia no país. Os revolucionários tentaram de todas as formas proibir a produção e a venda da “galette des rois”, mas falharam dada a força histórica da tradição.

Independente de ser cristão ou não para celebrar o Dia de Reis, não deixa de ser divertido preparar uma “galette” dessas, chamar a criançada e inventar várias prendas para aquele que encontrar o feijãozinho no meio do recheio. Aí fica a cargo da criatividade de cada um. Nem imaginava que aquele simples bolo nas vitrines parisienses me levaria a uma viagem na história. Essa é a delícia da gastronomia.

Ana Cláudia Leocádio Gioia
Ana Cláudia Leocádio Gioia
Graduada em Cozinha pelo Institut Le Cordon Bleu de Paris, em Gastronomia pelo Iesb-Brasília. Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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