Resgate do cabelo natural cacheado e crespo traz empoderamento e identidade cultural às mulheres

Isadora Farias fez alisamentos desde cedo e hoje, aos 17 anos, não se vê de outra forma a não ser cacheada. Foto: Divulgação

Vanessa Bayma

vanessabayma@canaltres.com.br

MANAUS – AM | “O black é a coroa e o pente, a libertação”. A frase, que ficou conhecida nacionalmente, foi dita pelo ator Babu Santana, no Big Brother Brasil 20, lembrando a importância dos fios, do “black power”, da cultura negra, do empoderamento. No Dia da Consciência Negra (20 de novembro), reunimos mulheres que passaram por essa libertação e reconhecimento da sua identidade cultural, por meio dos próprios cabelos.

Sempre que pode, Babu, do BBB 20, usa o pente na cabeça que referencia o seu ‘black’. Foto: Instagram/Reprodução

É que, como bem explicou o ex-BBB, o tipo natural do cabelo, antigamente, era ligado à sujeira, algo feio ou subversivo, o que, na verdade, mascarava o racismo. A estudante Isadora Farias, de 17 anos, lembra bem dos comentários e olhares na escola.

“Me chamavam de macaca, que meu cabelo era de Bombril, que eu não lavava direito. E, na verdade, eu sempre amei o meu cabelo, sempre gostei da estrutura, do volume, mas as outras crianças fizeram com que eu não gostasse. Foi um sofrimento muito grande e a única forma que eu vi de sair disso foi alisando meu cabelo”, explicou a estudante, ressaltando que só cedeu aos alisamentos, por perceber a falta de representatividade na sociedade, na internet, nas mídias – algo que vem mudando.

O alisamento nos cabelos de Isadora veio muito cedo, justamente por causa do preconceito, em torno dos 11, 12 anos de idade. A principal reclamação era o volume, a estrutura dos fios, e todo produto que pudesse diminuir o tamanho ou disfarçar a forma do cabelo, era usado: água, gel, presilhas.

“Desde criancinha eu pedia para a minha mãe, pedia até para Deus para ter o cabelo liso. Era um sonho, porque eu achava que só me sentiria bem com ele liso. Percebi que alisei pra parar de sofrer com o preconceito, me sentir mais bonita, lisonjeada por todas as pessoas e incluída”, lembra Isadora.

Hoje, no entanto, ela se considera outra Isadora. “É muito significativo eu armar meu cabelo, ir pra algum lugar e deixar ele armado e saber que aquilo sou eu. Isso me motiva até hoje. É olhar pro espelho e falar: ‘essa sou eu e não tem ninguém, e nem nada que vai me fazer deixar de ser eu. Independente de eu estar sendo incluída ou não”, conclui a estudante.

Transição capilar

Há alguns anos as mulheres – e alguns homens também – passaram a se redescobrir cacheadas, onduladas e crespas, sendo um processo de autoconhecimento. O mesmo aconteceu com Isadora, que aproveitou o momento da pandemia para cair de vez na chamada “transição capilar”.

A transição é um processo que busca voltar às origens naturais do cabelo. Nesse tempo, que pode durar de meses a anos, se deixa de usar qualquer tipo de procedimento químico para que os cabelos voltem a crescer naturalmente. Esse período também envolve autoconhecimento, aceitação, mas também muitas crises de autoestima.

A master em educação de cachos e cabelos crespos, Ely Reis, do Ely Reis Saloon, sabe bem como é isso. A especialista trabalha o resgate do cabelo natural cacheado/crespo em Manaus, há seis anos, sendo dois em salão próprio.

Ely Reis criou própria técnica a partir da experiência com o próprio cabelo. Na imagem, ela com a atriz Lucy Ramos. Foto: Divulgação

“A ideia do salão foi desenvolvida através de uma necessidade particular. Eu estava passando pela transição capilar e não tive um profissional que me desse suporte. A partir daí, busquei conhecimento e o fiz através de grandes academias, nacionais e internacionais, onde desenvolvi a minha própria técnica de corte, atendimento e personalizei”, explicou Ely.

Ela, que sempre trabalhou com todo tipo de estrutura de fio, acredita que oferecer esse tipo de serviço é muito mais que um corte ou um tratamento, especificamente falando da mulher cacheada. “A diferença, hoje, de você cuidar de uma cliente cacheada é o seu histórico, a sua dor. Uma cliente cacheada, provavelmente, 99,9% vai ser a chance dela chegar com você com muita resistência, dor. Ela tem um histórico e, por isso, é tão especial e merece esse cuidado”, atesta a especialista, uma das principais referências nesse segmento em Manaus.

Cabelos cacheados precisam de corte diferenciado para evidenciar a curvatura dos fios. Foto: Divulgação

No salão dela, são atendidas, em média, 10 clientes ao dia, de segunda a sábado. As cacheadas possuem um secador próprio para esse tipo de cabelo e o atendimento chega a 20 clientes por dia no final do ano. O salão oferece, ainda, o setor de estética e de cachos, para tratamento do couro cabeludo para quem sofreu com descamação, ansiedade e outros problemas decorrentes de químicas muito pesadas.

“Nossas clientes se descobriram em casa, sentiram a necessidade de voltar ao natural, e na pandemia a procura foi muito grande. No retorno aos salões, tivemos um crescimento de 60% de cliente de transição, que não aguentava mais alisamento e que aprendeu a ser natural”, explicou Rosely Albuquerque, diretora de marketing do salão e esposa de Ely.

Outro diferencial, claro, é o corte de cabelo. Antigamente, qualquer corte de cabelo liso era usado em cabelos com mais volume, resultando em cortes totalmente diferentes e que não eram adaptados para o fio com curvatura.

Fotos: Divulgação

No de cacheadas, como explica Rosely, é observada a textura, porque cada cacho tem um caimento diferente. E é no corte a seco o mais interessante para dar o aspecto natural dos crespos, cacheados ou ondulados. Além disso, nesse tipo de corte qualquer modelo pode ser executado, desde o long bob (estilo Chanel com a ponta na frente maior), antes feito só nos lisos, até às franjas.

Mas, o mais importante no salão, é o acolhimento da cliente, que muitas vezes chega insegura, com problemas de autoestima. “O que diferencia, realmente, é a sua habilidade, técnica, mas principalmente o respeito com o cabelo, a história da cliente, sua escuta e o suporte psicológico, emocional que ela pode precisar. A gente se torna muito mais que um profissional de cabelo. Vamos mais a fundo”, afirmou.

Tranças

Os aliados da transição capilar são os cremes, hoje em dia à disposição em qualquer supermercado e em grande variedade. Há também lenços, presilhas, vários penteados e, principalmente, as tranças.

O salão Tranças Afro Manaus é considerado o mais antigo especializado em trancismo, na cidade, atuando desde 1998. O lema dele é: “Trançando para transformar, transluzir e transmitir autoestima”. Tudo ideia da psicóloga Marly Paixão, que veio de São Paulo para cá em 1980, com 15 anos de idade, mas só a partir da década de 90 investiu nas tranças.

Jeinnyliss Paixão, dona do Afro Tranças, aponta que procura por estilo afro é grande, principalmente após transição capilar. Foto: Divulgação

“Minha mãe veio de São Paulo e tinha o cabelo alisado. Só que ela não se adaptou com o alisamento daqui. Foram várias tentativas frustradas, sofreu corte químico (quebra do cabelo) e muita queda de cabelo por causa disso. Foi aí que ela lembrou da minha tia, trancista em São Paulo, e ela começou a fazer as tranças em mim e na minha irmã, o que nos poupou diversas vezes o sofrimento de ter que pentear nossos cabelos todos os dias”, lembra Jeinnyliss Paixão, hoje a proprietária do local. Ela, além da irmã e de outras 11 mulheres da família, usam tranças.

No começo, antes de se darem conta que aquilo viraria um negócio, a mãe de Jeinnyliss só cobrava pelo material. Com o decorrer do tempo e com o aperfeiçoamento das técnicas, as pessoas começaram a procurar pelas tranças, tanto para mudar de visual quanto para iniciar a transição capilar.

Elas também têm um significado importante na identidade da cultura negra, sendo usadas por atrizes e cantoras como Taís Araújo, Juliana Alves, Dandara Mariana, IZA, além das internacionais Rihanna e Zendaya, que ajudaram nesse movimento de volta às raízes.

IZA alterna entre tranças e os fios soltos. Foto: Instagram/Reprodução
Taís Araújo passou pandemia de tranças. Foto: Instagram/Reprodução

“Antigamente, o mínimo que a gente podia fazer pra se encaixar, e ficar o mais próximo do que era ‘bonito’ e ‘perfeito’ era o alisamento. Tenho clientes que os maridos as deixaram porque quiseram usar o cabelo natural, gente que perdeu o noivo, que ia ser demitida porque o cabelo não era o ‘padrão da empresa’. E é uma realidade que só quem vive, entende, vê que não é mimimi, não é balela. Mas, felizmente, teve esse ‘boom’ do cabelo natural e agora as pessoas estão entendendo que ele é lindo, que é natural”, ressaltou Jeinnyliss.

O salão de Jeinnyliss, que faz literalmente a cabeça de homens e mulheres da cidade, tem ainda a ajuda da irmã, Keverly Paixão da Costa, que também é trancista. Jeinnyliss, inclusive, também fez o resto de sua transição capilar durante a pandemia. Mas sua marca registrada, assim como da irmã, são as tranças que elas usam e a propaganda do Tranças Afro.

Cada cabelo é feito por dois a quatro profissionais e dura muitas horas, às vezes metade de um dia. São feitas as tranças box braids, crochet braid, dreads, miojo, nagô e twist, além de alongamento fio a fio e crochet braid de cabelos cacheados. E nelas é possível usar a imagem por meio das cores: tranças coloridas, cor de rosa neon, azul, os mais variados tons, além de tamanhos.

Tiara nagô com alongamento.
Nagô com rabo cacheado.
Fulani Braids. Fotos: Instagram/Reprodução

*O Ely Reis Saloon fica na rua Durani, 76, conjunto Dom Pedro. Instagram: @elyreissalon

*O Tranças Afro Manaus fica na rua Jorge de Moraes, quadra A-28, número 4, conjunto Jardim Versailles, Planalto. Instagram: @trancasafromanaus

Vanessa Bayma
Vanessa Bayma
Jornalista manauara com experiência de mais de 10 anos em jornal impresso. Passou pelas redações de A Crítica e Manaus Hoje como repórter e editora. Fez parte da assessoria de comunicação da Alfândega da Receita Federal. Gosta de ouvir pessoas.

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui