ÓRFÃOS DO FEMINICÍDIO: As outras vítimas, os filhos, e a complexa missão de reorganizar a família

Para cada mãe assassinada, ao menos três crianças e adolescentes ficam órfãos e, na maioria dos casos, invisíveis à sociedade. FOTO: Reprodução.

REDAÇÃO

MANAUS – |Não há muito o que remediar para a vítima de assassinato, salvo esperar que as instituições funcionem e se faça a justiça dos homens, com a punição do assassino, o que nem sempre acontece. E quando se trata de um feminicídio, onde a mulher é a vítima – sendo ela, de acordo com as estatísticas nacionais, a principal provedora de seu lar, tanto no aspecto financeiro quanto emocional – e deixa para traz filhos desprotegidos, que tiveram seus mundos colocados de cabeça para baixo? O que é possível fazer para reestruturar suas vidas, dar o amparo necessário à essa recondução e o apoio imprescindível para que os pés voltem a pisar o chão, a cabeça pensar um recomeço e o coração ter um respiro? E, torná-los visíveis à sociedade?

É mais que possível que esses tenham sido alguns dos questionamentos e motivações das defensoras públicas Caroline da Silva Braz e Polyana Souza, quando decidiram levar à frente o projeto Órfãos do Feminicídio, no âmbito do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública do Estado (DPE-AM). Iniciado em 2018, o projeto tem como meta oferecer atendimento jurídico e psicossocial a crianças e adolescentes órfãos das vítimas de feminicídio, com a ajuda da própria defensoria e de instituições parceiras.

Mas, antes de chegar a essas outras vítimas, os órfãos, foi necessário um árduo trabalho de pesquisa, com o levantamento dos processos tipificados como feminícídio, consumados ou tentados, desde março de 2015 até 2018, quando se iniciou o projeto, nas três Varas do Tribunal do Juri, de Manaus. Nesse período, foram analisados 84 casos de feminicídio em Manaus, dentre eles, 52 tentados e 32 consumados.

De acordo com informações da Assessoria de Comunicação da DPE-Am, a partir desse estudo, foi feita uma busca ativa e contato com as famílias das vítimas, dando início ao acompanhamento social e psicológico, com visitas domiciliares, repetidas a cada seis meses. Nas visitas, além de entrevistas para levantamento de dados e dos possíveis fatores que levaram ao feminicídio, também eram observadas e identificadas as condições dos órfãos.

Nesse primeiro momento, foram realizadas visitas a 28 famílias, 11 delas permaneceram sendo acompanhadas. Como o feminicídio afeta todo o núcleo familiar das vítimas, nesse sentido o projeto atendeu a aproximadamente 60 familiares, entre filhos, filhas, pai, mães, diretamente e indiretamente afetados.

A prioridade do atendimento é nos casos em que há crianças e adolescentes que ficaram órfãos por um feminicídio e o tipo de atendimento é variável, de acordo com cada família, respeitando suas diferenças e particularidades. Há casos em que após a morte da mãe, é necessário entrar com pedido de guarda ou pedido de alimentos (pensão alimentícia) e até mesmo, pedido de reconhecimento de paternidade, além de outras situações. Além do atendimento psicossocial, a Defensoria presta auxílio jurídico a essas famílias e promove orientação para possíveis benefícios.

Defensora Stéfanie Sobral, atual coordenadora do projeto. FOTO: Evandro Seixas/DPE-AM.

“Os resultados são notórios, tanto na área criminal, quanto da família e da assistência prestada às famílias, como o serviço social e psicológico, atendimentos individuais e, conforme as necessidades, encaminhamento à rede”, afirma a defensora Stéfanie Sobral, atual coordenadora do Nudem e do projeto Órfãos do Feminicídio. “A aceitação das famílias tem sido alta e hoje já conseguimos fazer esse atendimento mais rápido. A própria sociedade já sabe e já ocorreu inclusive demanda espontânea”, afirma.

Os dados mais recentes, registrados de 2019 a agosto de 2020, apontam novos cinco casos consumados – sendo que duas vítimas deixaram filhos. Em 2021, foram registrados 11 casos e apenas uma das vítimas não deixou filhos. Em 2022 (até o momento), houve o registro de um caso. De acordo com o Nudem, a média de filhos deixados é de três, por mulher assassinada.

Obstáculos a superar – Um caso de feminicídio desorganiza uma família e é necessário um processo de reorganização. “As crianças e adolescentes atendidos pelo projeto têm recebido atendimento conforme as suas particularidades, buscando garantir cuidados em saúde mental em rede especializada específica. E esses cuidados iniciais pelo Nudem, que se estendem para a rede, são importantes e necessários para a reorganização em seus processos de desenvolvimento enquanto pessoas e sujeitos de direitos”, afirma a defensora.

Para que esse trabalho tenha mais efetividade, é preciso chegar rápido às crianças e adolescentes deixados órfãos. “Um dos principais obstáculos tem sido o acesso, em tempo hábil, aos dados dos casos de feminicídio logo que ocorrem. Por isso, a necessidade de construção de um fluxo em Manaus. Um dos nossos principais desafios é localizar as famílias com rapidez, evitando que se passe tanto tempo desde os fatos (crime). Com o tempo, fica mais difícil localizar essas famílias, pois elas podem mudar de endereço, telefone, e às vezes ocorre até mudança para outros estados, como já identificamos”, explica.

Prêmio – O projeto deu à DPE-AM o primeiro lugar no 18º Prêmio Innovare, no ano passado, que teve como tema a defesa da igualdade e da diversidade. O Prêmio Innovare pretende identificar, divulgar e difundir práticas que contribuam para o aprimoramento da Justiça no Brasil.

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