O VALOR DA COR: Um olhar transversal sobre o racismo estrutural no Brasil

MANAUS – |Segundo dados do IBGE, em 2019, pretos, pardos e indígenas correspondiam a 57,3% da população brasileira, sendo 46,8% autodeclarados pardos, 9,4% pretos e 1,1% indígenas ou amarelos. Então, hipoteticamente, de acordo com o que aponta o órgão, qualquer ambiente coletivo deveria ter o percentual representativo de cada grupo populacional, ressalvadas as diferenças regionais. Mas a realidade não funciona assim. Há ambientes em que a maioria dos brasileiros não frequentam ou não ocupam lugar de destaque, frequentemente ocupados por pessoas brancas. E não há nada de novo nisso. 

Historicamente, o domínio branco sobre as outras cores ou raças, e as desigualdades dele resultante, teve início na Era Moderna, no final do século XV e início do século XVI. “A descoberta do Novo mundo sob o domínio europeu pôs em movimento mecanismos de dominação em escala planetária como a escravidão moderna baseada no trabalho negro onde o continente africano foi o local de busca dessa mão de obra introduzida aos milhões no continente americano. Brasil e Estados Unidos foram os países que mais receberam os escravos negros”, explica o historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas, Hideraldo Lima Costa.

Historiador e professor Hideraldo Lima.

Segundo o professor, a dominação branca se estruturou na América portuguesa (Brasil) ainda no período colonial, com a estrutura centrada na construção de um estado colonial com instituições que tinha como base a dominação pelos homens nascidos no Brasil Reinado tidos como brancos (nobreza, fidalguia) que exploravam a colônia em nome da coroa portuguesa.

“Uma minoria branca tomando conta de instituições como o Estado e a igreja e os demais cargos públicos. Dentro desse cenário, foram subjugando os negros trazidos da África para serem explorados como mão de obra escrava e foram escravizando os indígenas, a força de trabalho local, os negros da terra”, pontua. “Paralelo a isso, a construção de uma ideologia que procurava firmar e afirmar o continente europeu como superior”, diz

Na busca dessa afirmação, além das armas, também foram utilizados outros instrumentos de dominação como a escrita. “Em fins do século XVIII e por todo o XIX, a literatura foi um importante instrumento de dominação usado pelos europeus para se sobrepor aos demais continentes. No século XVIII e XIX podemos dizer que a cultura europeia tida como superior já dominava o mundo. No Brasil, o processo de independência consagrou a elite branca e não alterou as formas de exploração. Continuou o latifúndio centrado no trabalho escravo negro e indígena. Na abolição da escravatura muitos negros já haviam pagos pela sua alforria. Não houve uma reforma agrária, não houve escola para os negros”, expõe.

A dominação branca no Brasil – Sob o olhar da sociologia, a cor no Brasil ocupa um lugar de afirmação de poder de uma minoria sobre uma maioria. “A primeira coisa feita pela colonização ibérica no Brasil foi transformar as maiorias de povos e nações indígenas em minorias subalternizadas como raças inferiores”, afirma a professora do Departamento de Ciências Sociais da Ufam, Marilene Corrêa da Silva Freitas. “Ao transformar o indígena e o africano de povos livres em cativos, subordinados aos processos de imposição da ordem (econômica, política, religiosa) colonial criou-se uma sociedade de castas, regida por uma hierarquização de cor e de raça que sobrevive até hoje na sociedade de classes”, conta. 

De acordo com a professora, o Brasil de pretos livres precisava manter o predomínio branco agora de outras formas, o chamado racismo estrutural. “Não adianta submeter um povo vencido apenas à subordinação política, é necessário mantê-lo em condição de inferioridade e esvaziá-lo de seus conteúdos socioculturais à condição de subordinação. Assim, se nem todos os indivíduos de raça negra são descendentes de escravos, torna-se imperioso para o racismo estrutural justificar que são da mesma origem, igualá-los em condição social e cultural, torná-los objeto sem alma e brutaliza-los pela exclusão e diferenciação”, afirma. 

O valor da cor – Sendo assim, a cor ou raça de uma pessoa passou a ter valor social no qual o elemento branco recebe as vantagens e privilégios disponíveis no contexto daquela sociedade, enquanto as demais lidam com as consequências de serem não brancas, como o racismo.

“A nossa sociedade hierarquiza as relações sociais em função da cor da pele, da classe social, do gênero. E o racismo, como esse fator de hierarquização da organização das relações sociais, estabelece lugares, atividades, posições que uma pessoa pode ou não pode ocupar em função da cor da pele e isso impacta todas as pessoas negras, independente de elas terem consciência de que são negras ou não”, diz a professora da Faculdade de Psicologia da Ufam (Fapsi), Iolete Ribeiro.

Iolete Ribeiro, da Faculdade de Psicologia da Ufam.

Segundo a professora, o tratamento discriminatório está presente na vida das pessoas negras todos os dias, gerando dor naqueles em que é imposto. “Essa sensação o tempo inteiro produz sofrimento e, às vezes, as pessoas têm consciência do que está acontecendo, às vezes, não; elas só sentem esse tratamento que é direcionado a elas. Seja de forma consciente ou não, as pessoas vão reproduzindo o racismo e as pessoas negras sentem isso”, diz.

Superar o comportamento racista é possível e necessário, mas requer um trabalho conjunto entre Estado e sociedade e o entendimento individual de que é preciso construir uma sociedade mais justa para todos. “Para você desconstruir e, de fato, adotar posturas antirracistas, você precisa de um processo de ampliação do conhecimento sobre a temática, de reflexão sobre a temática para você poder compreender isso. Além do mais, o enfrentamento ao racismo deve ser uma responsabilidade das pessoas brancas porque elas estão em lugar de privilégio e elas sustentam o racismo ao longo do tempo. Então, é importante que esse tema não seja apenas das pessoas negras, a mudança na sociedade envolve que essa responsabilidade seja assumida pelas pessoas brancas porque foi a branquitude que construiu e estruturou o racismo na sociedade e que sustenta o racismo até hoje”, ressalta.

Os movimentos de resistência – Mas, como destaca o professor Hideraldo Costa, a hegemonia branca nunca foi aceita submissa e pacificamente pelos povos subjugados. “Houve resistências armadas por parte dessas populações, fugas, lutas, formação de quilombos, entre outras formas de resistência. A história do Brasil é perpassada de lutas empreendidas pelos povos indígenas, pelos negros, pardos, pelos brancos pobres e todos estas inúmeras vezes fizeram alianças e lutaram contra a dominação branca. Criaram igrejas próprias, criaram religiões, ressignificaram a religião dos brancos formando crenças novas baseadas num verdadeiro sincretismo religioso. Tudo isso são formas de resistências que mostram que a cultura é circular e as formas de resistências são mais bem compreendidas no longo prazo”, esclarece.

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