E se a ceia de Natal fosse amazônica?

Pirarucu poderia substituir o bacalhau, influência portuguesa atual nas nossa ceias. Foto: Cybercook-Reprodução

Por Ana Cláudia Leocádio Gioia

Depois que estive em Israel e na Palestina, onde visitei os lugares que mantêm a memória de todo o itinerário daquele Homem que marcou o início de uma nova religião – o Cristianismo -, eu sempre me pergunto: e se Jesus Cristo tivesse nascido no Amazonas, como seria a ceia de Natal? São divagações que me levam a pensar sobre os sabores deliciosos dessa época de dezembro para se degustar.

A mudança começa pela estação. Dezembro no Polo Norte é inverno, com muita neve, noites mais curtas, frio demais, época das nozes, das castanhas portuguesas, damascos e outros produtos como as carnes de caça. No Amazonas, é tempo do “inverno amazônico”, com suas chuvas torrenciais e muita umidade, cheia dos rios, entre outras características. Mas é quando também começa a safra do açaí e do cupuaçu, que minha avó nos proibia de comermos os dois no mesmo dia, sob pena de termos indigestão.

Mesmo que o peru seja uma ave proveniente das Américas, mais precisamente na América do Norte, com destaque para as criações dos astecas, no que hoje é o México, na mesa amazônica talvez as aves de excelência à mesa de Natal seriam o mutum e o jacu, por serem maiores que os patos selvagens, e inambus. Tomo como base as receitas da minha saudosa avó Joaquina, que serviria, com certeza, um guisado de mutum ou um jacu ao molho de castanha do Brasil.

Para substituir o bacalhau, influência portuguesa na nossa ceia atual, temos o gigante da Amazônia, o pirarucu. Deste peixe grande, talvez não aproveitemos somente as vísceras, porque o restante rende muitos pratos. Do pirarucu seco salgado, prepararíamos um excelente desfiado, temperado com a saborosa pimenta de cheiro, alho, cebolinha e coentro e, para dar uma cor, umas gotas de sumo de urucum, como minha mãe faz para todos lá em casa. Ou nosso icônico pirarucu de casaca. Do pirarucu fresco, são inúmeras as opões: refogado com verdura, ao molho de tucupi ou molho branco, iscas fritas e guisado salmorado.

De acompanhamento, para substituir o arroz, vem a nossa majestosa mandioca, raiz bendita e seus inúmeros subprodutos, o principal deles a farinha amarela, que sozinha já é uma delícia. Mas dela também podemos fazer farofas variadas com a farinha branca, tapioquinhas, pés-de-moleque, beijucicas, fritinhos de massa puba seca, bolo de macaxeira, entre outras receitas que nossos caboclos ribeirinhos sabem de cor. 

Beijucicas feitas de goma de mandioca, na Feira de São Gabriel da Cachoeira. Foto: Clóvis Miranda – Divulgação

Embora não seja mais a estação, pois as águas dos rios já começaram a subir em dezembro, numa ceia amazônica não poderia faltar a tartaruga, mas atualmente só se for certificada pelos órgãos ambientais. E aqui eu não hesitaria em recomendar a “tartarugada” preparada por minha mãe Nazira. Além do sarapatel no casco grande, teríamos também guisado, picadinho com vinagrete no peito, além da farofa que ela chama de “pachicá”, feita com o fígado do quelônio e farinha amarela.

Guisado de tartaruga poderia ser um dos pratos principais da noite. Foto: Reprodução/Internet
Sarapatel no casco grande. Foto: Reprodução/Internet

Como uma boa ceia não pode prescindir de frutas, poderíamos encher nossa mesa de açaí, cupuaçu, bananas, goiabas, abacaxis (os nossos são os mais doces que já comi), além de tucumãs, pequiás, uixis, castanhas e outras que estejam na estação, no fim de ano. Isso sem falar nos doces que podemos fazer para sobremesa com esses ingredientes.

Mesa amazonense seria farta de abacaxis, açaí, cupuaçu e outras frutas. Foto: Clóvis Miranda – Divulgação

Alguém pode questionar: mas e as bebidas alcóolicas como vinho, champanhe e cerveja? Não podem faltar, claro. Estas são introduções de outras culturas que incorporamos de bom grado, mas se não existissem poderíamos resgatar dos nossos ancestrais indígenas bebidas como o aluá, a caissuma de pupunha (bebida fermentada do fruto), cauim e outros produtos fermentados de origem indígena.

Estas reflexões não significam que eu não goste do que temos na ceia de Natal e Ano Novo atualmente, até porque adoro peru assado, panettone e um bom vinho. É apenas uma maneira de pensar como nossos costumes seriam levados em conta nas comemorações do aniversário de Jesus, caso ele tivesse nascido por aqui, nessa terra de caboclos e indígenas. Como seria um Jesus caboclo? Lembro que nos mercados, as frutas secas que vêm da Europa, nessa época do ano, são caríssimas e agora com o dólar em alta, devem estar com preços exorbitantes.

Contudo, é louvável como nós brasileiros conseguimos combinar tão bem os nossos ingredientes com os alimentos trazidos pelos diferentes povos que chegaram ao Brasil. O importante é saber que os alimentos que levamos à mesa nesses festejos de aniversário de Cristo e de despedida do ano, são o congraçamento de todas as nossas conquistas e novas aspirações para o ciclo que se inicia, independente da origem de cada prato que preparamos. Que todos tenham um Natal cheio de saúde, mesa farta e muito amor no coração! Até 2022.

Ana Cláudia Leocádio Gioia
Ana Cláudia Leocádio Gioia
Graduada em Cozinha pelo Institut Le Cordon Bleu de Paris, em Gastronomia pelo Iesb-Brasília. Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui