Sabores e aromas do Sul da Turquia

O terremoto que abalou a região sul da Turquia, no início deste mês de fevereiro, além da profunda tristeza, trouxe-me a lembrança de uma das melhores viagens que fizemos pelo país, na época em que lá moramos. Além da riqueza cultural e histórica, há no sul do país uma cozinha singular, de ingredientes sofisticados, como o pistache, as carnes e as especiarias de diferentes aromas.

Localizada próxima à fronteira com a Síria, a cidade de Gaziantep, na província de mesmo nome, é conhecida como a capital gastronômica da Turquia. A região é rica em cultura de outros povos e por ali passaram diversas civilizações e conquistadores, dos Hititas aos Seljúcidas. Mais ao sudeste, por alguns quilômetros, chega-se à vizinha Şanlıurfa (pronuncia-se Chanliurfa), conhecida também como Urfa, a cidade onde teria nascido, vivido e morrido o profeta Abraão.

São memoráveis as plantações de pistache que avistamos desde as rodovias, produzidos em geral por pequenos agricultores de Gaziantep que, em julho, começam a maturar a plantação para a colheita nos meses seguintes, de agosto a setembro. Os pistaches de Antep são bem valorizados no mercado internacional, por serem cultivados em área que dispõe das condições ideais de clima e solo que desenvolvem um ingrediente de verde intenso e marcante sabor.

Não à toa, as “baklavas” de pistache produzidas ali são disputadas no mercado, sem falar nas outras guloseimas que levam a iguaria. “Baklava” é um doce típico do Oriente, feito à base de massa de farinha de trigo bem fina, crocante e recheada com nozes ou pistache. Uma vez assada, é embebida em calda de açúcar. A casa mais famosa da cidade é o “Imam Çağdaş”, que dispõe de um restaurante com o que há de melhor da cozinha de Antep. Quem chega por ali precisa esquecer a palavra dieta.

Outra sobremesa deliciosa é o “künefe”, feita de um macarrão fino tipo cabelo de anjo (kadayıf), com queijo sem sal, assado até dourar, bem como banhada com calda de açúcar. O segredo dessa iguaria é o equilíbrio do doce com o queijo. De comer rezando.

Famosa pelos pratos feitos à base de carnes, seja bovina ou de cordeiro, uma vez que muçulmanos não comem porco, os vegetais e legumes ocupam lugar importante na cozinha da região. No verão, os preparos privilegiam os ingredientes frescos, da estação, com destaque para os pimentões, os tomates e a beringela, geralmente cozidos com algum recheio (dolmasi). No mercado, além das especiarias e dos grãos, destacam-se pendurados os vegetais e legumes secos, indispensáveis para os tempos de inverno.

Além do kebab, comum em toda a Turquia, há ainda pratos deliciosos como os köftes (que conhecemos como kafta), de todo tipo de carne, cujo diferencial são as especiarias que eles usam para temperar. Outras opções são três tipos de carnes assadas na brasa em forma de cubos. Invariavelmente, os acompanhamentos são um tipo de pão inflado delicioso, legumes e vegetais e, lógico, um Ayran artesanal, que é a bebida nacional feita à base de iogurte. Cada casa faz o seu. Lembro-me que o de Gaziantep foi um dos melhores que tomamos.

O que mais nos chama a atenção são as variedades de preparos que se pode fazer à base de pimentões, beringelas e tomates. Os recheios vão da carne aos vegetarianos, mas cada um traz um sabor peculiar. O uso de iogurte faz parte, igualmente, dessa cultura da cozinha turca, sobretudo como acompanhamento de kebabs e köftes. Não se pode dizer que não tenhamos uma dieta saudável nessas viagens gastronômicas.

Gaziantep leva tão à sério o título de capital gastronômica da Turquia, que existe até mesmo um Museu da Cozinha da região como estratégia de não deixar que a cultura culinária se perca, apesar de muitos pratos já terem deixado de ser consumidos. Formaram, no entanto, a base do que se tem hoje. O “lahmacun” (pronuncia-se larmajun), uma espécie de pizza, é bem famoso em todo o país.

Mosaicos e a arte do cobre

Além da comida, há diversas atrações importantes. Foram encontrados na região, por exemplo, os mais importantes exemplares de mosaicos do Império Bizantino, ou seja, o Império Romano do Oriente que durou do ano 395 a 1453, quando os turcos conquistaram Constantinopla, atual Istanbul. O acervo foi retirado da cidade de Zeugma – então inundada por uma represa – e todas as peças encontram-se hoje expostas em um enorme museu, construído especialmente para recebê-las. O lugar é uma preciosidade.

O passeio pela cidade não ficaria completo sem uma visita ao mercado do cobre, em que dezenas de artesãos trabalham as peças para serem comercializadas, tais como pratos, panelas, samovares, copos e suportes para xícaras de café. Uma das atrações são grandes pratos de cobre, isto porque, na viagem de conquista dos turcos, vindos do leste asiático até se fixar na Ásia Menor, atual Anatólia, precisavam carregar seus utensílios, como esses pratos. Nos acampamentos, eram transformados em mesas, onde eram colocadas as refeições e aquecidas, com todos os convivas sentados em volta, no chão. Chegamos a comprar um deles, que transformamos em mesa de centro da nossa sala.

Mesmo interditados para ingerir bebida alcoólica, por motivos religiosos, o solo rico da região também permite a produção de uma das uvas emblemáticas do país, originária principalmente da província vizinha de Diyarbakır. A “Boğazkere” (pronuncia-se boasquerê) resulta em um vinho bem encorpado, com elevado tanino e acidez. Era um dos nossos favoritos. Diyarbakır concentra a população curda na Turquia.

Com tanta história, cultura e qualidade da cozinha, é grande o pesar ao ver tantas vidas perdidas pelo recente terremoto. Famílias inteiras foram destruídas. Rogamos, assim, os melhores desejos para que consigam se reerguer e continuem a fazer valer a força de tudo o que pudemos vivenciar naquela região, com um povo trabalhador e generoso. Que o perfume do pistache e os aromas das cozinhas e dos mercados sigam nos enchendo a alma de muita esperança.

Ana Cláudia Leocádio Gioia
Ana Cláudia Leocádio Gioia
Graduada em Cozinha pelo Institut Le Cordon Bleu de Paris, em Gastronomia pelo Iesb-Brasília. Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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