Ana Cláudia Leocádio Gioia
Depois de alguns meses morando aqui em Kingston, capital da Jamaica, resolvemos começar a visitar os lugares onde morou o rei do reggae, Bob Marley, e conhecer seu legado, que encanta o mundo até hoje. E nessas andanças descobrimos que o astro, além de ser um reconhecido seguidor do Rastafári, um movimento religioso judaico-cristão, era também adepto da alimentação “Ital”, estilo de vida orientado pelos livros sagrados do Antigo Testamento.
O passeio se inicia pelo “government yard”, em “Trenchtown”, presente na mais famosa canção de Marley “No, Woman, no cry”. É visita obrigatória para quem chega à cidade, pois foi para aquele distrito pobre da capital jamaicana que, nos anos 1950, ele se mudou com a mãe, quando tinha apenas 12 anos. Trenchtown foi a base de toda a sua formação musical, em tempos de muita dificuldade para todos.
O espaço onde Bob Marley morava é o que poderíamos chamar, no Brasil, de estância. Construída em forma de “U”, com um pátio no meio, é dividida em vários quartos pequenos, com banheiros e cozinha de uso comum. Funciona atualmente na casa um museu, onde são expostos a história do bairro, o primeiro violão e o quarto do artista, além de capas de seus discos. Os guias nos revelam que o quarto do cantor ainda mantém a cama da época em que Marley lá residiu e criou hits como “Three Little Birds” e “Stir It Up”.
A visita guiada é praticamente para mostrar como eram as outras construções do centro habitacional, as ruas onde moravam os amigos do cantor, Peter Tosh e Bunny Wailer, parceiros nas composições na banda “The Wailers”. Conta-se que, apesar de Marley compor a maioria das músicas, o rei do reggae decidiu colocar muitas delas em nome dos amigos para evitar que as gravadoras se apropriassem das arrecadações das mesmas e, assim, deixar seus amigos em boa situação financeira também.
Mas é impossível prosseguir falando de Bob Marley, e um pouco de sua alimentação, sem comentar sua fé na religião Rastafári. Tentar explicá-la em poucas linhas é mais difícil ainda, por ser algo que tem origem em movimentos sociais e políticos complexos iniciados no século 19, como o pan-africanismo. Essa fonte despertou o sentimento de pertencimento à África em homens e mulheres escravizados que viviam na região do Caribe e nos Estados Unidos.
Em meio à efervescência de ideias de liberdade, de fim da segregação e de identificação com os valores africanos, uma parcela dos jamaicanos começou a lembrar das palavras de um grande líder negro, Marcus Garvey, que dizia a eles, nas primeiras décadas do século 20, para prestarem atenção à África, uma vez que lá seria coroado um rei, redentor de todos os negros no mundo. A doutrina do pan-africanismo foi a base da independência dos países africanos.
No livro “Rastafari: Cura para as nações – uma perspectiva brasileira”, o jornalista e indigenista André Duarte Albuquerque nos conta, de maneira simples, um pouco de como ocorreu essa transição na Jamaica. Em 1930, a Etiópia coroou como rei Haile Selassie I, que até então se chamava Ras Tafari Makonnen, que deu origem ao Rastafarianismo nesta ilha do Caribe. Para os rastafáris, Selassie é considerado o rei dos reis, o leão da tribo de Judá, descendente de Salomão com a rainha de Sabá, o redentor dos africanos dispersos pelo mundo.
O movimento busca no Antigo Testamento as orientações para seu modo de vida, principalmente a alimentação, que evita carnes em geral, sobretudo a de porco, sal e óleo, e prioriza as frutas e os vegetais orgânicos. Os temperos para substituir o sal eram ervas e pimenta, como a scotch bonnet, muito parecida com a nossa pimenta cheirosa, porém ardosa. Mas há os menos radicais, que se permitem comer peixes, como o próprio Bob Marley. Os Rastafári acreditam, ainda, no poder espiritual da “Ganja” (popularmente conhecida como maconha), erva trazida para a ilha pelos indianos, por meio da qual atingiriam elevado estágio de iluminação.
Além das mensagens de congraçamento dos povos e a defesa da paz, Bob Marley adotava a dieta “Ital”, que vem da contração da palavra “vital”, que só aceita alimentos naturais, sem conservantes. O cantor nasceu em família católica, mas converte-se ao movimento Rastafári, na década de 60.
Na casa onde morou, depois que saiu de Trenchtown, hoje transformada em museu, um dos principais utensílios expostos em sua cozinha é um liquidificador. Segundo a guia do local, o cantor se alimentava de muitos sucos, sobretudo de coco, manga, abacaxi, mamão, entre outras frutas abundantes na ilha. Sua fidelidade à dieta “Ital” era tanta, que ele não viajava em turnês sem seu chef de cozinha pessoal, Gilly. Também não consumia bebidas alcoólicas. O cantor morreu em maio de 1981, vítima de câncer, aos 36 anos.
Apesar de o movimento Rastafári ter se tornado famoso no mundo por causa do icônico “rastaman”, na Jamaica é considerado minoritário, ao abranger somente 3% da população. O Cristianismo é a religião dominante na ilha. É interessante, no entanto, como a dieta vegetariana e vegana, que prioriza ingredientes naturais, tal como a rastafári, tem grande espaço por aqui. Nos supermercados há muitas opções nas gôndolas, assim como nos restaurantes na capital e em outras partes da ilha. Mas a filosofia ‘Ital” é bem mais abrangente, porque advoga pela produção própria daquilo que seu corpo consome.
Já buscamos alguns restaurantes de cozinha “Ital”, mas os que existiam antes da pandemia, hoje estão fechados. A alternativa é reservar um passeio nas comunidades “rasta”, localizadas nas montanhas jamaicanas, ou em restaurantes veganos baseados nessa filosofia pela ilha, para que possamos conhecer melhor a dieta Rastafári. Somente assim será possível, além de visitar as plantações orgânicas de seus produtos, degustar os preparos dessa comida tão autêntica. Mas aí já será assunto para um novo artigo.