Jacira Oliveira
Especial para o Canal Três
Estava entre os meus 17 e 18 anos quando vi, pela primeira vez, uma Cannabis Sativa, ao vivo e a cores e não, não foi em uma rockonha. Foi na casa de uma amiga da escola, que fui visitar de improviso. Lá fui apresentada à exótica plantinha, que estava ali no cantinho, escondidinha, em uma lata, quase atrás da porta da cozinha. Bateu a curiosidade, claro, e ali mesmo fui informada que a plantação não tinha absolutamente nada a ver com qualquer propósito de ‘enrolar um beque’ ou ‘um baseado’. Ela tinha a missão de aliviar a dor de um paciente com câncer terminal, tio da minha amiga, que não reagia mais, de forma satisfatória, às doses cada vez mais crescentes de morfina.
Bem, fui nascida e criada em uma família linha dura, onde palavras associadas a drogas (e maconha entre elas) eram proibidas, terminantemente e, evidentemente, sofri um primeiro grande impacto. Contraditoriamente, ou não, minha mãe, a matriarca da família, era uma espécie de enfermeira-curandeira-parteira e exercia a ‘medicina’ natureba. Se fosse médica de fato, exerceria a Naturopatia, como se conhece hoje. Nossa casa, humilde, tinha um extenso quintal com árvores frutíferas e canteiros de hortaliças, legumes e, obviamente, de plantas medicinais que eram utilizadas para chás, emplastos e banhos com os incríveis poderes curativos para as cólicas dos bebês, verminoses, anemia, baques, fraturas e lá se vai uma larga lista.
Não me surpreendeu, portanto, uma planta com o incrível poder de aliviar a dor. E isso nunca saiu da minha cabeça e do meu sentimento em relação a cannabis. Mas, o fato da planta estar ali, escondida, dizia muito do dedo acusador que poderia pesar sobre aquela família, do preconceito sobre a erva, da criminalização e estigma que a sociedade impunha e ainda impõe. A maconha é ilegal no Brasil e em muitas partes do mundo, embora a proibição não tenha, exatamente, cumprido com a premissa de reduzir o uso recreativo da substância e da violência envolvida no mercado ilegal da planta.
Então, mais de 40 anos depois dessas primeiras impressões da cannabis, e com muitas e muitas histórias acumuladas, algumas engraçadas, outras nem tanto (que outra hora posso contar a vocês), dou de cara com um artigo, publicado há poucos dias, informando que a Fiocruz, um dos órgãos brasileiros mais respeitados na área de pesquisa da saúde, vai induzir pesquisas para possibilitar o uso da cannabis medicinal como recurso para a saúde pública. Isso é realmente fantástico. Hoje, o uso é exclusivo para quem pode pagar um bom dinheiro para comprar, de uma lista reduzida de produtos autorizados, o que convém ao seu tratamento.
As pesquisas e o uso legal cannabis medicinal avançaram nos últimos 10 anos no Brasil, seguindo uma tendência que é mundial, de regulamentação de medicamentos feitos à base da planta. A Anvisa, que é o órgão regulador dos medicamentos no Brasil, já autorizou a produção e a comercialização de vários produtos – veja bem, é produto, o próprio órgão não reconhece como medicamento – que têm em suas fórmulas a cannabis sativa.
Mas, mesmo que seja um produto e não um medicamento, a sua comercialização em farmácias e drogarias no Brasil exige dispensação feita por farmacêutico, a partir de prescrição médica em receita especial do tipo B (receita azul). São 15 os produtos já autorizados para comercialização no Brasil, cinco à base de extratos de cannabis sativa e 10 à base do fitofármaco canabidiol, cuja produção foi autorizada pela Anvisa em 2020. Um número extremamente pequeno frente aos já autorizados no mercado americano e em mercados de Europa.
Muitos devem estar se perguntando: ah, mais com tantos remédios disponíveis, qual a diferença que a cannabis sativa poderia oferecer?
Então, lembram do caso do tio da minha amiga?
São vários os estudos, mas vou citar o mais recente, da Unicamp, que aponta para a eficácia dos canabinoides no tratamento de doenças neurológicas: parkinson, glaucoma, depressão, autismo e epilepsia. E há evidências da eficácia dos mesmos contra as dores crônicas, em efeitos antitumorais e contra os enjoos causados pela quimioterapia, além de tratamento da espasticidade (distúrbio no sistema nervoso central) causada pela esclerose múltipla.
Os canabinoides também são efetivos no tratamento da fibromialgia, distúrbios do sono, aumento do apetite e diminuição da perda de peso em pacientes com HIV; melhora nos sintomas de síndrome de Tourette, ansiedade e para a melhora nos sintomas de transtornos pós-traumáticos.
Ou seja, é muito benefício e muita evidência que, por anos, foram barrados pura e simplesmente pelo preconceito. O estigma da maconha vai prevalecer sobre a evolução científica? Esperamos que não.