A conexão do rum com os jamaicanos

Alguns dos três rótulos da mais antiga e famosa destilaria da Jamaica, a Appleton State / Foto: Karine Moraes

Desde que chegamos à Jamaica, um dos produtos que nos chama a atenção é o rum produzido na ilha e sua qualidade. Herança do período colonial e escravocrata na condução das “plantations” de cana-de-açúcar, o destilado tornou-se parte indissociável da cultura local, com seus variados rótulos e coquetéis.

É muito difícil definir quando o rum foi inventado, uma vez que a cana-de-açúcar é uma planta estrangeira, da Papua Nova Guiné, com forte presença nos países asiáticos e nas ilhas do Oceano Pacífico, passando pela Península Árábica, que foi um dos grandes produtores mundiais de açúcar, tendo dominado o comércio por muitos anos na Europa. Muito mais tarde, foi levada para a África e depois tornou-se o principal produto da colonização das Américas do Sul, Central e do Caribe.

Foi nesse contexto que a cachaça, uma espécie de rum, começou a ser produzida primeiramente nas fazendas instaladas no litoral do Brasil, no início do século XVI, aproveitando o conhecimento dos portugueses, que já exploravam a cana nas ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde, antes de se instalarem do outro lado do Atlântico.

De acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), a bebida surgiu, intencionalmente, entre 1516 e 1532, constituindo-se “no primeiro destilado da América Latina, antes mesmo do aparecimento do Pisco, da Tequila e do Rum.” O primeiro registro foi encontrado em São Vicente (SP), mas há relatos do uso da bebida nos estados de Pernambuco e Bahia.

Não é muito clara a origem da palavra rum. Acredita-se que derivaria do inglês “rumbullion”, que significa “grande tumulto”. Da mesma forma, o nome “cachaça” possui várias teorias para seu surgimento. Uma das mais aceitas seria a que deriva do espanhol “cachaza”, ou vinho de borra, um vinho inferior bebido em Portugal e na Espanha.

Quem inventou primeiro

Aqui pelo Caribe não diga a um jamaicano que o rum foi inventado em outro lugar, pois é capaz de dar briga. Mas o fato é que a ilha de Barbados reivindica o título de ser o produtor de rum mais antigo do mundo, na Mount Gay Distilleries Ltd., no ano de 1703. Conhecido como “mata-diabo” (kill-devil), este destilado já chegou a ser usado também como moeda de troca de africanos escravizados para as plantações nas Américas. Imagine se conto para eles que a cachaça é considerada a “mãe do rum”?

Na Jamaica, a destilaria mais antiga e famosa é a Appleton State, localizada no sudoeste da ilha, no Vale de Nassau. Representa uma área de solo fértil em calcário e com regime de chuvas suficiente para a qualidade da cana-de-açúcar utilizada na produção. A companhia foi instalada no ano de 1749, no que vinha a ser uma fazenda de cana-de-açúcar. Após quase dois anos morando aqui, fomos visitar a planta da empresa e vale muito a pena. O lugar é muito bem estruturado e moderno.

Conhecer essa destilaria é passeio obrigatório na Jamaica / Foto: Roberto Alfaia

Uma das diferenças entre a forma de produção do rum e a da cachaça brasileira, pelo que pude apreender, dá-se no uso do melaço da cana para fazer o primeiro, enquanto a segunda é feita com o suco fresco (garapa). As ilhas francesas optam por produzir o destilado com o caldo fresco, que resulta no chamado “rhum agricole”.

O processo de fabricação

O guia Pieter, da Appleton State, explicou-nos que o processo inicia com o aproveitamento do melaço na etapa final da produção de açúcar, o principal produto das plantações. Na fazenda, o melaço é diluído em água, com adição de levedura e fermentação por 48 horas. Só então o líquido é transferido para a dupla destilação, feita em grandes alambiques de cobre, de onde sai límpido e com teor alcoólico de 86 graus, quase impossível de ser consumido.

Melaço diluído em água com leveduras / Foto: Karine Moraes

Já destilada, a bebida então passa para a próxima etapa, o envelhecimento, de no mínimo 3 anos a até 50 anos, em barricas de carvalho usadas para maturação do uísque Bourbon que, segundo o guia, dá ao rum características únicas de cor âmbar, sabor e aroma.

A fábrica tem capacidade para produzir cerca de 160 toneladas de açúcar por dia, além de dez milhões de litros de rum por ano, dos quais 80% exportado.

A etapa de envelhecimento é feita em barris de carvalho americano, usados na fabricação de uísque Bourbon
Foto: Karine Moraes

Ao final do passeio pela destilaria, foi-nos oferecida uma degustação de três dos seis rótulos da companhia: o “Signature”; o “8 Reserve”; e o “12 Years Rare Casks”. O primeiro constitui-se numa mistura de 15 tipos de rum e é indicado apenas para coquetéis; o segundo, por sua vez, um pouco mais maduro, pode ser usado em “drinks”, mas é melhor apreciado puro. Já o de 12 anos, deve ser degustado com paciência e sem gelo, dado o ‘carinho’ que o dulçor leva às nossas papilas gustativas. Mesmo quem não é um apreciador de rum pode sentir os aromas e delicado sabor na boca.

A melhor parte da visita: A degustação de três rótulos
Foto: Karine Moraes

O grande sucesso dos produtos da Appleton tem a marca registrada da mestre-sommelier Joy Spence que, desde 1997, tornou-se a primeira mulher a liderar o trabalho de produzir rums no mundo. No ano passado, para comemorar os 60 anos de independência da Jamaica, Spence criou o rum “Decades”, composto com o destilado de cada ano, desde 1962, sendo comercializado por cerca de US$ 1.700,00 a garrafa.

Há ainda outras cinco destilarias pelo país, que produzem tanto runs maturados como o “white rum” (translúcido). Enquanto os runs envelhecidos em carvalho vão perdendo o teor alcóolico com o passar dos anos (engarrafado em 40%), os runs brancos são mais fortes, entre 63% e 70% de teor, como o Wray & Nephew, uma marca subsidiária da Appleton State. Outro rótulo muito apreciado na Jamaica é o “Kingston 62”, em referência ao ano da independência do país.

Ao final, o mais interessante nessa viagem de conhecimento sobre o rum e, lógico, suas comparações com a nossa cachaça é concluir que, cada um a seu modo, se conecta, sendo o mais importante saber aproveitar todos esses aromas e sabores que o destilado da colonização nos traz. Claro, sem exageros e com moderação.

Ana Cláudia Leocádio Gioia
Ana Cláudia Leocádio Gioia
Graduada em Cozinha pelo Institut Le Cordon Bleu de Paris, em Gastronomia pelo Iesb-Brasília. Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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