INCLUSÃO: Lei das cotas reescreve a história para mais de 16 mil alunos no Amazonas

No Amazonas, a lei possibilitou o ingresso de 16,8 mil alunos da capital e do interior. FOTO: Reprodução.

REDAÇÃO

MANAUS – |A Lei das cotas, estabelecida pela Lei 12.744 de 2012, está reescrevendo a história de milhares de estudantes no Brasil. São pessoas autodeclaradas negras, pardas, indígenas e deficientes que tiveram acesso ao ensino superior no país, graças a essa reserva de vagas. A Universidade Federal do Amazonas (Ufam), por exemplo, já recebeu 16.823 novos universitários por meio das cotas, de 2012 a 2021, a maioria em Manaus (12.744) e o restante em outros polos de graduação mantidos pela instituição no interior do estado (4.079), de acordo com a Pró-Reitoria de Ensino de Graduação.

Alina Samara Lima de Jesus, 23, é uma dessas pessoas que tiveram sua história reescrita. Nascida no interior do Pará, ela é a primeira de sua família a ingressar em um curso superior, rompendo com o ‘destino’ de exclusão ao qual foram submetidos os seus membros por várias gerações. Aline ingressou na Ufam pelo Sisu, na modalidade de cotas para oriundos de escolas públicas que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas, com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 salários mínimos per capita.

“Meus avós, meus pais e meus irmãos só têm o ensino fundamental, e outros o ensino médio incompleto. Quando entrei na Ufam em 2018, por meio de cota PPI1, todo esse processo teve muito impacto na minha vida. Posso dizer que sou outra pessoa hoje. A menina de 10 anos atrás, filha de pais pescadores, jamais imaginaria estar em uma das universidades mais importantes do Brasil, me graduando, fazendo pesquisa, extensão, tendo acesso à informação, à educação de qualidade”, disse.

David, da falta de oportunidades ao Mestrado. FOTO: Divulgação/Ufam.

Outra história reescrita foi a de David Conceição Feroldi, 25, hoje mestrando em Psicologia do Programa de Pós-Graduação da Ufam. Amazonense do interior, nascido em Apuí, ele somente vislumbrou a possibilidade de ingressar no ensino superior quando teve conhecimento da Lei das Cotas para pessoas de baixa renda. Ele também é o primeiro da família a ter um curso superior em universidade federal. “Foi isso que me motivou a buscar pela vaga ainda mais, e a sonhar com essa conquista”, conta.

Como Aline e David, a hoje estudante do curso de Relações Públicas Vitória Fernanda Nunes, 21, ingressou por meio das reservas de vagas. “A Lei de Cotas me deu a oportunidade de ter acesso a uma universidade pública. Minha avó e minha mãe não tiveram nem a possibilidade de pensar em fazer uma graduação, ainda mais minha avó que vem de uma geração sem acesso e sempre trabalhou em casas de família, mas sempre me incentivou a estudar e a cota me possibilitou entrar e ser a primeira da família”, contou.

Obstáculos – Garantir o acesso à universidade é uma vitória de grande dimensão, mas o caminho para os alunos que ingressam pela Lei das Cotas não é, nem de longe, um mar de rosas. Existem vários obstáculos, como por exemplo, nivelar seus conhecimentos para acompanhar o ensino superior e obter bom rendimento.

Aline admite a deficiência na sua formação de base, mas garante que isso foi superado. “Uma forma que encontrei para diminuir essas deficiências na formação inicial foi fazer estudos individuais, participar de grupos de pesquisa, de extensão, participar de Residência, Pibid, entre outras atividades. Todas essas experiências somaram muito”, expôs. “Em certas áreas, diria que consigo até me destacar, provando que as deficiências lá do início, não definem quem sou hoje”, completa.

David também passou por situações difíceis, não só para acompanhar o curso, como também por garantir financeiramente a sua vida acadêmica. “Participei de projetos de extensão, iniciação científica, fiz uso de políticas de assistência estudantil, e creio que se não houvesse uma lei tão importante para auxiliar e possibilitar a entrada na universidade de pessoas que não têm condições de arcar com os custos do ensino superior, nada disso seria possível”, avalia.

No caso de Vitória, ela também logo teve que deixar para trás a alegria do ingresso na federal, para ir em busca da permanência e término da graduação. Vitória também precisou de ajuda para conseguir acompanhar o curso. E teve um desafio a mais em sua trajetória: o racismo no ambiente acadêmico. Autodeclarada negra, a universitária relata que sofreu discriminação por causa da cor de sua pele. “Não sofri preconceito por ser cotista, mas por ser preta já sofri sim. Geralmente, eu não falo que sou cotista, mas em relação a minha cor é algo nítido, noto por olhares, a forma de tratamento dos professores e de alguns colegas no meu curso”, comenta.

Vitória também sentiu na pele o preconceito racial. FOTO: Divulgação/Ufam.

Movimento estratégico – Aplaudida e reverenciada por muitos e criticada por outros tantos, a Lei que reserva vagas na universidade – destina 50% de suas vagas para atender a esse público – é uma política de inclusão social que tem o mérito de acabar, ou no mínimo, reduzir um apartheid na educação brasileira.

Mesmo antes da aprovação da Lei, mais da metade da população brasileira, de acordo com os censos realizados até então, era autodeclarada negra, parda ou indígena. Mas a realidade do ensino superior não refletia – e ainda não reflete – a realidade étnica e social brasileira. A Lei das Cotas vem, gradativamente, reduzindo essa exclusão.

Segundo o Censo da Educação Superior de 2019, a maior parte das matrículas no ensino superior brasileiro (42,6%) foi feita por pessoas brancas, mas o percentual formado por pretos, pardos e indígenas atingiu 38,9% do total (31,1% pardos, 7,1% pretos e 0,7% indígenas). Outros 16,8% não declararam cor ou raça e 1,7% eram amarelos. São dados que indicam uma pequena, mas significativa mudança na sociedade brasileira.

“A Lei foi bem-sucedida em todos os aspectos e qualquer crítica em relação a isso pode se enquadrar nas distintas manifestações do racismo estrutural”, diz a professora do Departamento de Ciências Sociais da Ufam, Marilene Corrêa. Em sua análise, a Lei das Cotas foi um sucesso como política afirmativa, como quebra de continuidade geracional de grupos sociais impedidos pela desigualdade de ter acesso à educação superior pública. “Pode ser o início de várias medidas de reparação histórica e de combate às disparidades econômicas e socioculturais e até regionais”, avalia.

A professora do Departamento de História da Ufam, Patrícia Sampaio, lembra que as demandas por cotas étnico-raciais é pauta no movimento negro brasileiro há quase meio século. “As ações do estado brasileiro foram o resultado de uma forte pressão da sociedade civil organizada. Não foi algo casual”, destaca. Ela diz também que, mesmo com limitações, a Lei de Cotas transformou a universidade pública brasileira de maneira significativa. “Isso é inquestionável. Os números são expressivos para demonstrar esse resultado positivo”, ressalta.

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