Vanessa Bayma
vanessabayma@canaltres.com.br
MANAUS (AM) – | O Amazonas ficou conhecido como o epicentro da Covid-19 no Brasil com a crise do oxigênio, ocorrida no início de 2021, resultando num total de mais de 13 mil mortes até outubro. Morreram pais, mães, irmãos, filhos, tios e tias, avós, avôs, amigos no geral, o amor de alguém. Vidas que poderiam ser poupadas. Agora, com uma realidade menos aterrorizante e com mais de 50% da população vacinada, a demanda psicológica “pós-covid” pode ser um desafio para os profissionais do estado.
Um estudo de pesquisadores da Universidade de Brasília, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, publicado recentemente no periódico internacional The Lancet, apontou um crescimento de consultas psicológicas durante a pandemia.
As consultas de emergência subiram 36% e o atendimento domiciliar teve um crescimento de 52%. Ainda de acordo com o estudo, durante a pandemia, houve um crescimento de transtornos mentais, sendo estes ansiedade e depressão, principalmente.
O psicólogo e doutor em saúde pública da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) e professor adjunto da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Eduardo Honorato, trabalha em um Centro Especializado em Reabilitação da rede municipal, em Manaus, onde recebe em sua maioria pacientes pós-covid, atualmente. De acordo com ele, a pandemia deu uma “sacudida” nas pessoas e fez com que vários sintomas e quadros se desenvolvessem durante esse tempo.
“As pessoas já não estavam bem antes, então agora, com toda a situação econômica, o caos social, o desemprego, a gente vê alguns sintomas vindo com toda a força. Em pessoas que já tinham o transtorno de ansiedade ou de humor, isso se agravou. E quem não tinha nada antes da pandemia, passou a apresentar os sintomas de ansiedade e depressão. Isso por conta do medo, do desespero, da falta de informação ou excesso de informação naquele momento”, explicou o especialista.
O psicólogo participou da coordenação do serviço de saúde mental oferecido pela UEA, Conselho de Psicologia e Semsa, ajudando no atendimento on-line durante a pandemia. O serviço foi oferecido gratuitamente. Além disso, realizou pesquisas sobre o impacto social na ocorrência de ansiedade e depressão, elaborou artigo sobre o apagão do oxigênio na Amazônia e as mortes por asfixia, além de pesquisa sobre os principais sintomas psicológicos durante o isolamento, este último como forma de preparar psicólogos clínicos para assistência virtual.
Apesar de alguns trabalhos ainda não estarem publicados ou revisados, muitas das ocorrências vistas durante a pandemia de Covid-19 já haviam sido relatadas em artigos mundiais em outros momentos. “Inclusive um artigo que a gente publicou ano passado, no início da covid, que era sobre o que a gente poderia esperar durante a pandemia. E o top três é: ansiedade, depressão ou ansiedade e depressão. A gente também tem situações bem específicas, como o aumento do consumo de álcool, drogas e outras substâncias psicoativas. Quem fazia o uso anteriormente, agravou um pouco, e quem não fazia o uso começou a usar com mais frequência”, apontou o especialista.
Na avaliação de Eduardo Honorato, essa tentativa de fuga da realidade foi a saída para boa parte das pessoas que apresentaram problemas de saúde mental, seja porque contraiu o vírus, perdeu familiares ou porque simplesmente estava com medo do que viria depois. Todos ficaram perdidos.
“Falamos em um artigo que a primeira onda de saúde mental foi quando a pandemia chegou. O que iria acontecer, aquela ansiedade em relação a ela. A segunda foi ‘como é que a gente sobrevive?’, lidando com a situação. A terceira, que é essa que vem agora, é o depois da pandemia, ‘o que vai acontecer com a gente?’. As pandemias são conhecidas mundialmente como tragédias em saúde mental, elas deixam um rastro emocional muito grande. Então, agora, a gente está lidando com esse momento e recebendo esses problemas”, pontuou.
Lutos consecutivos
Um desses problemas, baseado na vivência do psicólogo e de colegas que diariamente têm recebido os casos, são os de pacientes com transtorno de estresse pós-traumático, popularmente conhecido também como tept, vítimas de sequelas pós-covid ou em decorrência da pandemia mesmo. Entre esses enfermos, destacam-se os profissionais de saúde e de serviços essenciais que estiveram na linha de frente durante toda a pandemia: médicos, enfermeiros, motoristas, todos os trabalhadores da saúde no geral e até mesmo profissionais da imprensa.
“Eu lido diariamente com vítimas do apagão do oxigênio em Manaus, atendo profissionais da linha da frente e tenho vivenciado isso. Não é estatisticamente comprovado, mas eu tenho visto um aumento de tept. A gente sabe o que viveu na crise do oxigênio, já se passaram 9, 10 meses e as pessoas perderam muita gente, há lutos múltiplos ou consecutivos; que é você perder o pai numa semana, a avó três semanas depois, o irmão cinco e você não consegue elaborar isso porque a ferida vai sendo sempre reaberta”, relatou Honorato sobre sua experiência pessoal, destacando que só agora, para muitas pessoas, é que “a ficha vai caindo” após perder muitas pessoas e o estresse acumulado se fazer presente.
Ainda nos profissionais de saúde, especificamente, um esgotamento afetivo e agudo, uma resposta imediata às situações estressantes foi observado: “Pelo meu contato com os meus colegas, e é um ponto de investigação, são esses casos de estresse agudo. É quando uma pessoa passa por um trauma e meses depois ela passa a reviver esses traumas. A gente meio que teve uma síndrome de burnout, que é o esgotamento afetivo”.
A síndrome de burnout é um problema psíquico caracterizado pelo esgotamento mental devido às condições de trabalho onde a pessoa não consegue mais desempenhar suas funções como antes. “O burnout é uma expressão em inglês, um phrasel verb, que significa, por exemplo, quando você pega um fósforo e risca, ele queima até o final. Ele queimou todo, ele acabou. Tecnicamente falando do fósforo, ele não presta mais pra nada. E esse sintoma, na pessoa, significa que ela chegou ao seu limite e dali não dá mais pra sair nada”, exemplificou Honorato.
No dia 19 de janeiro deste ano, logo após a crise de oxigênio, segundo a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM), foram contratados 50 psicólogos, duas psiquiatras e 20 assistentes sociais para o atendimento de profissionais da saúde, atuantes nas unidades hospitalares e em licença por transtornos psicológicos.
As consultas foram realizadas para médicos, enfermeiros, técnicos, maqueiros, auxiliares de serviços gerais, recepcionistas e outras funções e teve duração de três meses. A oferta foi em mais de dez Serviços de Pronto Atendimento (SPA), hospital e pronto-socorro, unidade de pronto atendimento (UPA) e também maternidade.
Isolamento social e crianças
Outro ponto importante que a pandemia e, consequentemente o isolamento social proporcionou foi a interrupção dos contatos sociais. Festinhas de aniversário, idas ao playground, shopping e visitas aos amigos e família tiveram que ser canceladas e feitas por meio de aplicativos, por exemplo, como o Zoom, ferramenta de comunicação também muito usada para as aulas.
Na avaliação de Honorato, muitas crianças nasceram durante a pandemia e perderam essa parte do desenvolvimento onde tem a interação com outras crianças na escola e parentes. “Isso é muito prejudicial para a criança e a gente precisa sempre trabalhar com diagnóstico precoce, com intervenções precoces, porque a infância é uma fase muito importante para o desenvolvimento. Precisamos da sociabilização, trazer de volta à realidade o mais rápido possível para que tenham as vivências sociais, aprendam a compartilhar, dividir com o colega, então a escola é muito importante e trouxe um problema complicado durante o isolamento”, afirmou.
O psicólogo ainda fez um alerta: “Criança saudável tem que brincar. Ela tem que brincar porque o brincar é uma das poucas maneiras em que a criança consegue colocar para fora sua angústia, dissipar sua ansiedade. O adulto vai pra academia, sai com os amigos, conversa, e a criança, brinca”.
Nesse processo, muitas também vivenciaram o luto, sendo considerado um assunto difícil para ser abordado, mas um desafio que os psicólogos devem lidar da maneira mais saudável possível usando técnicas para explicar a morte e o adoecimento, assim fazendo a prevenção mental desses pequenos e evitando problemas futuros em outras fases da vida.
Desde o início da primeira onda da covid na cidade, o atendimento de saúde mental é oferecido em cinco policlínicas e nos Centro de Atenção Psicossocial (Caps), com o apoio da modalidade on-line em parceria com a UEA e o Conselho Regional de Psicologia (CRP). Destes, três são para o público adulto e um ao infantil.
A demanda, no entanto, é grande, e na opinião de Honorato, uma das abordagens das políticas públicas neste momento deveria ser a promoção da saúde mental, uma vez que a saúde mental nunca foi uma prioridade para o Sistema Único de Saúde (SUS) e, com a pandemia, os problemas de saúde mental só se intensificaram.
Dessa forma, a população deveria ter acesso a informações e meios de melhorar sua qualidade de vida e saúde mental, não necessariamente fazendo terapia, mas tendo acesso a atividades físicas, lazer, cultura e sociais no geral.
“É muito fácil a gente falar que as pessoas têm que fazer terapia, quando terapia não é um chiclete que você compra na esquina. É um serviço caro, restrito, e mesmo oferecido no SUS, não é pra todo mundo, existe uma limitação. De quantidade de sessões, perfil e também não temos muito profissionais na área. É leviano, da minha parte, falar que as pessoas precisam de terapia sabendo que nem toda a população tem acesso”, explicou Honorato.
O trabalho é de prevenção para evitar problemas maiores, mas, como cada caso é um caso, cada um sabe onde o “seu calo aperta”: “A gente precisa entender que existe um momento em que nada surte efeito, que a gente não consegue lidar com essa dor e sofrimento e aí, sim, a gente busca ajuda. Porque chega uma hora que realmente fica muito forte”.
Além das medidas sociais que devem ser resgatadas, ajudando no bem-estar emocional, e com a ajuda da rede de atenção psicossocial do estado e município, todas as universidades de Manaus possuem clínica-escola onde é obrigatório o atendimento gratuito.
Os casos de covid não chegaram ao fim, apesar do avanço da vacinação, sendo possível enxergar uma “luz ao fim do túnel”. No entanto, só com o passar dos anos teremos ideia de todos os efeitos psicológicos ocasionados e o que mudou. “Somos todos diferentes, grupos sociais diferentes, mas que vai ter um impacto, isso vai. Espero que seja do ponto positivo, que a gente tenha aprendido alguma coisa como as sociedades passadas aprenderam nas guerras, mas é muito cedo e estamos ainda no meio desse furacão”, finalizou.