Jacira Oliveira
Especial para o CANAL TRÊS
MANAUS – |O ato calculado e criminoso de um médico anestesista que, após submeter sua vítima à sedação, aproveitou seu momento de vulnerabilidade para cometer estupro, a poucos passos de todo o restante da equipe médica, expõe, de forma muito descarada, vários dos elementos que desenham a violência contra a mulher desde a idade média, senão antes: hierarquização do poder e imposição desse poder pela força, certeza da impunidade, glorificação do macho em conjunto com a desconstrução da mulher como pessoa humana, objetificação ou coisificação da mulher, machismo e subjugação da mulher e, certamente, uma boa dose de cúmplice omissão.
E o caso sequer é isolado. Em 2019, a Intercept Brasil divulgou um registro de 1.734 casos de violência sexual contra o gênero feminino, em instituições de saúde, em nove estados que forneceram os dados de 2014 a 2019, envolvendo diferentes profissionais de saúde e locais dos crimes, incluindo Centros e Unidades de Terapia Intensiva (CTIs e UTIs). Outras violências haviam sido cometidas como racismo, lesbofobia, transfobia, gordofobia e violência obstétrica. Tanto as mídias tradicionais quanto as digitais e as redes sociais estão repletas de relatos de vítimas ou testemunhas dessas ações criminosas, que não chegam aos registros públicos de segurança e Justiça.
Ao sentimento provocado, de que estamos diante de uma barbárie, somam-se as estatísticas que, apesar da frieza dos números, são capazes de dimensionar, mesmo que superficialmente, o que vem acontecendo no Brasil. De março de 2020 – quando se iniciou a pandemia – a dezembro de 2021, a cada 10 minutos foi cometido um estupro contra o gênero feminino, incluindo os de vulneráveis, de acordo com os dados divulgados no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em março deste ano. Ainda segundo o Fórum, nesse período, mais de 100 mil meninas e mulheres sofreram violência sexual.
Só no ano passado, foram 56.098 estupros no Brasil. Em Manaus, capital do Amazonas, com uma população estimada em, aproximadamente, 2,3 milhões de habitantes, foram 590 estupros contra o gênero feminino registrados pelos órgãos de segurança pública e, em 2022, até o mês de maio, foram 275 casos, a maioria cometida contra vulneráveis (189). Por vulneráveis se entendem: pessoas sob o efeito de álcool ou outra droga, com medo, emocionalmente abaladas, crianças e idosos, apenas para citar alguns.
JUSTIÇA – No âmbito da Justiça, de janeiro de 2020 a julho de 2022, foram distribuídos 834 processos por crime de estupro em Manaus, 524 deles contra vulneráveis e 2.844 no interior, 2.231 contra vulneráveis, todos processos de primeiro grau. Já de segundo grau (normalmente tratam-se de recursos) existem 771 processos distribuídos por esses crimes, nesse período. Não é possível, por meio dos dados, saber quantos desses processos já foram a julgamento e quantos foram os acusados condenados pelos crimes. Os documentos também não trazem a informação se a vítima é do gênero feminino.
REDE DE ACOLHIMENTO – É importante que a mulher vítima de violência saiba que ela não está sozinha e que pode buscar ajuda em vários campos, tanto no aspecto policial e jurídico, quanto de assistência pessoal, médica e psicológica. Existem redes de acolhimento para mulheres vítimas de violência. A porta de entrada para essa rede são as Delegacias Especializadas da Mulher, onde deve ser feita a denúncia da agressão. Ministério Público, Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil são outros órgãos que estão disponíveis a prestar auxílio para todos os procedimentos, para que as mulheres vítimas de violência recebam toda a atenção.
“Existe um corpo de apoio na Delegacia da Mulher, formado por profissionais do serviço social e da psicologia, para que auxiliem a mulher nesse momento tão delicado, tendo em vista que muitas vezes a intenção da vítima é, primeiramente, conversar para depois, sim, prestar denúncia formal”, explica a advogada e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/AM, Amanda Praia.
Para a advogada, é importante destacar que há vários tipos de violência contra a mulher, além da física e a sexual. Há também a psicológica, patrimonial e moral. “Na hipótese de a mulher ser vítima de alguma violência, é necessário que procure a Delegacia da Mulher e registre uma ocorrência para que o procedimento seja encaminhado para a Justiça e todas as medidas cabíveis sejam tomadas”, alertou. A própria OAB-Amazonas mantém a Comissão de Direitos Humanos que está aberta às questões que envolvem a violência e crimes contra as mulheres.
“Infelizmente, não podemos esquecer que há todo um contexto histórico em relação a subjugação da mulher frente à sociedade. Viemos de um passado (ainda presente) machista, onde filhos são criados para serem livres e filhas são criadas para obedecer e servir. Uma parcela da sociedade ainda pensa assim, portanto, é importante sempre colocar este assunto em pauta e debater com todos para que a mentalidade vá mudando ao ponto de que casos de violência contra a mulher sejam cada vez mais escassos”, opina a advogada.
Para denúncias de crimes contra a mulher Disque 180