A tradição culinária da festa do Divino em Alvarães

Desde criança fui acostumada a ser levada pelos meus avós para os preparativos da Festa do Divino, em Alvarães (a 531 km de Manaus/AM), que na época ainda era a Vila de Caiçara, vinculada ao município de Tefé (a 522 km). O mais interessante era quando chegava a época dos mutirões para a “tirada” do tucupi e da goma, que depois serviriam para a fabricação dos biscoitos e do tacacá da levantação do mastro.

A festa do Divino Espírito Santo é uma tradição católica, com início em Portugal, no século 14, pela rainha Isabel, e que acabou se difundindo nas colônias portuguesas. Tinha como símbolos a coroa do império e a pomba, que relembra, conforme a Bíblia, o batismo de Jesus Cristo por João Batista. Ocorre todo ano, sete semanas após o Domingo de Páscoa, comemorando a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, o Pentecostes.

É interessante que de Norte a Sul do Brasil a festa é realizada de maneiras diferentes, como em Pirenópolis, em Goiás, e no Guaporé, em Rondônia, com ritos próprios na parte tradicional, mas sempre focados na figura da Coroa ou Pomba.

Em Alvarães, os festejos começaram em uma comunidade, na década de 40, com o pagamento de uma promessa do patriarca da família Brasil, e ganharam grandes proporções, sendo transferidos para a sede do município. É uma festa de caráter comunitário, que une o tradicional, o religioso e o cultural, em que as pessoas doam seu tempo para preparar as delícias que serão servidas no café após a alvorada, no almoço e depois da levantação do mastro, no fim da tarde.

Como uma festa que começou na casa de agricultores, no centro dessa cultura gastronômica está a mandioca, sem a qual não se pode preparar os biscoitos de goma com castanha e erva-doce, assim como os pés-de-moleque e o tacacá.

Todo ano é definido o juiz do mastro (pagador de promessa), responsável pelo início das festividades, provendo toda a alimentação e diversão do dia. Antes da Igreja Católica e da prefeitura adotarem a festa também como parte cultural da cidade, havia a figura do festeiro, cuja atribuição era o encerramento das festividades.

Neste ano de 2023, dividimos essa responsabilidade com a família Meireles e pude acompanhar mais de perto todo o trabalho. Da roça de mandioca, plantada um ano antes, provem todo o insumo necessário para a retirada da goma e do tucupi, servido com jambu e camarão de água doce pescado no ano anterior.

Os biscoitos

A receita desse biscoito varia de família para família. Basicamente, porém, é feito com a goma escaldada, sendo depois temperada com castanha do Brasil ralada, erva-doce, sal, óleo e ovos. A massa deve ser bem sovada, para que então se comece a enrolar os biscoitos em forma de anéis, que serão assados em um forno de barro sobre uma folha de sororoca. Depois, são deixados em estufa para torrar, etapa necessária por questões de durabilidade. Somente na véspera da festa são preparados os biscoitos moles e os pés-de-moleque para servir junto com o torrado.

Toda essa produção é distribuída gratuitamente depois da alvorada, em saquinhos. O ritual consiste em uma procissão pelas ruas da cidade, com os foliões levando as bandeiras e a população as tochas, em passeata de luzes pelas ruas, com início às 4h da manhã e término no raiar do dia.

Mal termina o café e o almoço já está sendo colocado no fogo, que varia dependendo das condições dos juízes do mastro. Os pagadores de promessa compram geralmente bois para distribuir à população, além de frango ou feijoada. No cardápio, o guisado de carne com macarrão, arroz e feijão é o prato tradicional mais servido na ocasião.

O rito mais esperado do evento é a levantação do mastro, que ocorre por volta das 17h. A árvore foi escolhida um ano antes e coletada nas semanas anteriores à cerimônia pelos “procuradores”, responsáveis por escolhê-la e guardá-la até o dia da festa. Como ofertas, são amarradas, no caule, canas, bananas e abacaxis, que ficam expostos até o dia da derrubada, no Pentencostes.

O tacacá

Para comemorar a levantação, é servido o tradicional tacacá, feito por uma ‘tacacazeira’ de experiência na cidade, a quem são entregues todos os ingredientes e a equipe que a ajudará na preparação. Ao contrário dos tacacás feitos com camarão marinho, em Alvarães é utilizado o camarão de água doce, como manda a tradição. Este é cozido no tucupi junto com o jambu, a cebola, o alho, a cebolinha e um pouco de pimenta. A fila é infinita, cada um com sua cuia em busca do líquido precioso.

Terminada a parte tradicional, dá-se início à novena que inaugura oficialmente os festejos, a serem concluídos após nove dias. Após o arraial com comidas típicas, bingos e leilões, à meia-noite começa a parte cultural, que muitas vezes só termina na manhã do dia seguinte, usualmente com uma atração regional e local.

Até o início dos anos 2000, quando havia os festeiros, ritos similares eram repetidos na finalização da festa. Atualmente, na véspera de Pentecostes, o encerramento acontece com uma grande procissão terrestre, e depois no rio, com a soltura de barquinhas coloridas, feitas à base de aninga, papel de seda e velas, num grande show de luzes e cores, com cantos religiosos, queima de fogos e ação de graças.

Mesmo com a supressão de algumas tradições ao longo dos anos, a cultura culinária continua a ser o ponto forte dessa grande festa, que une toda uma cidade, para a realização de cada detalhe. Espero que continue assim por muito tempo.

Ana Cláudia Leocádio Gioia
Ana Cláudia Leocádio Gioia
Graduada em Cozinha pelo Institut Le Cordon Bleu de Paris, em Gastronomia pelo Iesb-Brasília. Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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